segunda-feira, setembro 04, 2006

Agnes e Hernesto

Sentou-se no banco atônita. Autofagia. Comia-se. Não estava autopiedosa. Não chorava. Era um alívio misturado a um sentimento de peso no estômago. Não sabia. Pensava. Saiu de lá com uma mentira. Entrou, repetiu palavras com tanta verossimilhança que achou aquilo mesmo fosse o que não havia sido.Uns olhares cautelosos, desconfiados, outros displicentes. Mas nenhum foi tão duro quanto ao da criança. Ela a abraçou forte com densas e sinceras lágrimas, como se fosse um adeus. Não era, talvez até fosse e aquilo lhe mostrava agora o caminho. Naquelas pálpebras gordinhas, gotas também obesas brotavam do lustroso olho. Eram as lágrimas que Agnes não conseguira. Agnes paralisou naquele rápido segundo. Estática. Ali entendera que a dor nada mais é que uma perda. Disse que recebera uma ligação de casa e precisava voltar, nada mais. Repetiu sem remorsos. Era uma mentira-feita. Uma mentira sem mal. Uma mentira do ser humano. Uma mentira própria das conveniências, não foi nada, muito obrigado, até outro dia. Há mentiras justas. Família reunida. Páscoa. Hernesto aceitou e ponto. E mais reticências. Fingira. Com um sorriso também muito real. Que oscilava entre um desconforto e uma insegurança. Ela estava indo embora. Pra sempre? Estava indo. Havia um sopão delicioso que cheirava forte. Mesmo com os desejos mais gulosos. Viu olhares. A sopa. As lágrimas. O sorriso. E precisa ir.
Estava plácida, mas suspirava. Ele a acompanhara até a parada. “Querida? Está suspirando porquê?” Não sabia responder. Aqui, ele está ao meu lado. É como estivesse sozinha. Suspiro. Hernesto não disfarça essa preocupação do rosto. É como dias monótonos e nublados. Estava com a face opaca. Não enxergava aquela inocência indecente dele. Que não era bem inocência. Era o jeito de quem pensa pouco e com muita profundeza, mas vive. Faz a vida viver. Já haviam passado o portão e desciam uma lomba peculiar. Cheia de gentes, ser humanos, pessoas. Sombras. Tudo era um flash. Nunca, Agnes, esteve tão dentro de si como estava. Tremera por instantes, tremera nisso que ousamos chamar de alma. Estava com a náusea. Era a essência à flor da pele. Cansara do existencialismo. E ele continuava a se perpetuar por seus músculos.Hernesto falava palavras, talvez para não acreditar naquele abismo entre eles. Ela respondia movimentos da boca. Não estava se articulando com o peito. Só mexia a boca ao bel prazer das respostas. Queria mais que tudo ir embora. Ansiosa. “Não quer que eu te toque? Não quero forçar nada”.Abracei-o. Não tive medo que ele não me quisesse mais como sempre tivera. O abracei porque de alguma forma o queria ali. Meu deus! Não temo que ele se vá. Estou agora liberta para o amar com todo meu eu ou não o amo o suficiente para continuar isso? Blém. Blém. Blém. E foi como um sino a ressonar na sua cabeça. Estava (parecia) caminhando sozinha. Não notara que estava atravessando a rua, nenhum holofote, nenhuma luz da cidade, nenhum movimento.
Na parada. Ali, o abracei com todo meu peito que estava no chão e não conseguia juntá-lo. Amar se aprende amando. Amar se aprende amando já dizia o poeta. Amar se aprende amando. Ele revelou na conversa íntima ( lá, no quarto, antes dela mentir pra todos e ver sua lágrima sair pelo rosto da pequena Laura) ele revelou sua busca pelo amor, se já tinha realmente amado. Ela que já tinha desistido de tentar saber... Achou aquilo bobo, mas tão nobre... Que sentiu vontade de dizer pra ele amá-la ali mesmo, sem pensar se a amava. Hernesto estava agora confuso e calmo. Tinha certeza do seu amor. “Agnes, espero que fique tudo bem.” Agnes desejou o mesmo em silêncio (ele não sabia.). Um estranhíssimo tchau, até mais. Chega o ônibus.
Sem remorsos. Estava sentada. Sem olhar pra trás. Disposta a não entender. Viagem longa. A rua corria no sentido oposto. Quis lacrimar. Não lacrimou. Quis voltar. Não podia. Quis... A liberdade que Agnes havia dado a si mesma a apavorou. Achou que nunca poderia sozinha, sem nenhuma ajuda ir embora de Hernesto. O queria tanto. O amar pode ser uma prisão. Mas junto com ele, ela podia ser quem tentava ser. Ela era liberta. Hernesto tinha sido a liberdade mais bela que ela conhecera. Quis pensar em Hernesto, mas tudo tão pouco visível, pouco palpável, pouco sensível. Hernesto com toda certeza. Sabia só. Pouco. Pouco do que Hernesto era para ela. Hernesto por Hernesto era uma pérola irregular, feia, mas incrivelmente liberta dessa beleza, que era realmente a coisa mais bela. Ele era uma das maiores dores. Uma das maiores veias do seu corpo. Uma das maiores virtudes dela. A vida ele trazia, e transbordava para ela. Ela o amava. Mas precisou deixá-lo. Não porque não quisesse mais tê-lo, ou porque estava vacinando-se para um futuro não adeus. Não, aquilo não era um paliativo pra ambos. Era uma necessidade dela. Tão particular, que não podia ser explicada, desculpada ou gritada.
Imaginou gritar pra descer ali mesmo e correr mais rápido que podia. Para voltar pra Hernesto. Imaginou apenas. Pois era corajoso, heróico e romântico demais para ela. Era um folhetim barato. Quis ser uma dessas babaquices.
Especulou ainda um bom motivo: foi isso mesmo! Claro! Estava se autodestruindo. Bobagem! Um motivo. Só um motivo rogando pra si mesma. Não tinha. Era uma necessidade de quem é inconstante, fraco e covarde? Não pensou mais. Observou o cobrador que com olhos aflitos pensava em chegar em casa com algum chocolate para o filho. Nas rugas jovens viu um rancor. Pensou na mulher que cozinhara triste a janta. Estava na hora. Aqueles 45 minutos passaram em 4. Tinha de descer. Agnes ajeitou-se, atraindo percepções para si.
Agora o cobrador antes distraído, com suas idéias, a olhava curiosamente. E pensou consigo, que nada era o que estava sentindo, quando notou timidamente a mocinha. Timidamente, pois teve vergonha de olhá-la. Estava despida de um corpo. Era duma tristeza tão imensa que um movimento fez expandir-se por todo o recinto e chegou até ele. Naquele rosto novo, uma dor triste de quem leigamente ama. De quem descobre as esquinas do amor. Parecia não ter um pedaço. Os três degraus mais tristes foram descidos. E meu filho...
Agnes, agora, havia saído do espaço de curiosidade do cobrador. A noite estava gélida de morte. Noite morta. Vultos raros na rua. Vou caminhar por aí. Andou passos em direção ao nada sem nenhuma esperança. Pisou em casa e Hernesto estava com ela. Não de carne, de osso, de sorriso, mas nela, nos seus dedos, nos seus olhos, no seu peito, no seu caminhar, nos seus lábios. Sentiu o rosto quente. Uma estranha sensação de saudade rejeitada. E a gente pode rejeitar a saudade? Não sabia, mas algo tinha perdido. Não. Tinha deixado com ele. Não um adeus para sempre. Largou ali com ele, propositalmente, pra buscar-rebuscar o que tinha de mais secreto pra si: o desaprender de amar.

Cristiane Cubas.

2 comentários:

L. disse...

Eu não sabia que tu era dona de um mini espaço na rede blogspot. Eu não sabia mesmo!

Anônimo disse...

Belo texto, sorvi-o com prazer.

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