terça-feira, dezembro 12, 2006

Trechos de Caio Fernando Abreu

Para homenagear a delicadeza dos ferimentos,
relembro trechos dos contos Harriet, Para uma ah vem cá partindo e Pequenas Epifanias:
"sabe que o meu gostar por você chegou a ser amor pois se eu me comovia vendo você pois se eu acordava no meio da noite só pra ver você dormindo meu deus como você me doía de vez em quando eu vou ficar esperando você numa tarde cinzenta de inverno bem no meio duma praça então os meus braços não vão ser suficientes para abraçar você e a minha voz vai querer dizer tanta mas tanta coisa que eu vou ficar calada um tempo enorme só olhando você sem dizer nada só olhando e pensando meu deus mas como você me dói vezenquando.” (Harriet)
Ah: sabe entre duas pessoas essas coisas que devem ser ditas, o fato de você achar minha tosse intolerável, por exemplo, eu poderia me aprofundar nisso e concluir que você não gosta de mim o suficiente, porque se você gostasse, gostaria também da minha tosse, dos meus dentes escuros, mas não aprofundando não concluo nada, fico só querendo te dize “...” eu vou te dizer todas as coisas, é por isso que estou falando, “...” é fundamental que você preste atenção em todas as palavras, todas, e não fique tentando descobrir os sentidos ocultos por trás do que estou dizendo, sim, eu reconheço que muitas vezes falei por metáforas, e que é chatíssimo falar por metáforas “...” está bem, eu espero aqui do lado da janela enquanto o ônibus não sai, espera, as maçãs ficam comigo, é muito importante, vou dizer tudo numa só frase, você vai........................................................................................................................................................................................................................................................................................................... sim, sei, eu vou escrever, não, eu não vou escrever, mas é bom você botar um casaco, está esfriando tanto, depois, na estrada, olha, antes do ônibus partir eu quero te dizer uma porção de coisas, será que vai dar tempo? Escuta, não fecha a janela, está tudo definido aqui dentro, é só uma coisa, espera um pouco mais, depois você arruma as malar e bolsas, fica tranqüila, esse velho não vai e incomodar você, olha, eu ainda não disse tudo, “...” eu preciso de muito silêncio e muita concentração para dizer todas as coisas que eu tinha pra te dizer, olha, antes de você ir embora eu quero te dizer quê.” (Para uma ah vem cá partindo)
"Nunca mais sair do centro daquele espaço para as duras ruas anônimas. Nunca mais sair daquele colo quente que é ter uma face para outra pessoa que também tem uma face para você, no meio da tralha desimportante e sem rosto de cada dia atravancando o coração. Mas no quarto, quinto dia, um trecho obsessivo do conto de Clarice Lispector "Tentação" na cabeça estonteada de encanto: "Mas ambos estavam comprometidos. Ele, com sua natureza aprisionada. Ela, com sua infância impossível". Cito de memória, não sei se correto. Fala no encontro de uma menina ruiva, sentada num degrau às três da tarde, com um cão basset também ruivo, que passa acorrentado. Ele pára. Os dois se olham. Cintilam, prometidos. A dona o puxa. Ele se vai. E nada acontece. De mais a mais, eu não queria. Seria preciso forjar climas, insinuar convites, servir vinhos, acender velas, fazer caras. Para talvez ouvir não. A não ser que soprasse tanto vento que velejasse por si. Não velejou. Além disso, sem perceber, eu estava dentro da aprendizagem solitária do não-pedir. Só compreendi dias depois, quando um amigo me falou — descuidado, também — em pequenas epifanias. Miudinhas, quase pífias revelações de Deus feito jóias encravadas no dia-a-dia. Era isso — aquela outra vida, inesperadamente misturada à minha, olhando a minha opaca vida com os mesmos olhos atentos com que eu a olhava: uma pequena epifania. Em seguida vieram o tempo, a distância, a poeira soprando. Mas eu trouxe de lá a memória de qualquer coisa macia que tem me alimentado nestes dias seguintes de ausência e fome. Sobretudo à noite, aos domingos. Recuperei um jeito de fumar olhando para trás das janelas, vendo o que ninguém veria. Atrás das janelas, retomo esse momento de mel e sangue que Deus colocou tão rápido, e com tanta delicadeza, frente aos meus olhos há tanto tempo incapazes de ver: uma possibilidade de amor. Curvo a cabeça, agradecido. E se estendo a mão, no meio da poeira de dentro de mim, posso tocar também em outra coisa. Essa pequena epifania. Com corpo e face. Que reponho devagar, traço a traço, quando estou só e tenho medo. Sorrio, então. E quase paro de sentir fome.” (Pequenas epifanias)

sábado, dezembro 09, 2006

Pequena ironia norte-americana (e francesa)

A LIBERDADE É UMA ESTÁTUA!

(E FICA SOZINHA EM UMA ILHA)

REPITO

Para Gabriela Link

Poeta bom é poeta morto!
Antipoeta bom é antipoeta mudo.

terça-feira, dezembro 05, 2006

Matem a saudade!

Aos poucos foram rasgando as carnes,
o clitóris, o coração e a massa cinzenta.
A miúde foram secando as latências do sangue:
mãos e pés.
Aos pífios foram embora os movimentos rítmicos...
o piscar dos olhos, o molhar dos lábios.
Aos minímos foram, ainda, umas manias!
Ranger de dentes, suar frio, respirar pulsado.
Nada foi que perdeu, nada foi que lhe tiraram





nada te mata em mim .

Falecer é uma questão de esquecimento.
Que adianta amputar e matar?
Levem também a nostalgia!
Tirem esse corpo pesando sobre outro!
Lavem esse gosto de pele da boca! Esse aconchego!
Levem o retrato mal curado da parede!
O cheiro do quarto, do trapo, da tralha, do travesseiro, de todos os lugares.
Amassem os sentimentos que carrega no bolso!
Levem o velar do sono!
Vão embora com as rezas ao pé do ouvido!
Sumam as juras gritadas ao tripé da janela!
Desapareçam as más palavras e verbos esbofeteados na cara!
Vão! Antes da tempestade!
Vão para que continue no idílio da morte.
Vão antes que a saudade se lembre!

AMOR
TUMOR


Dá me! Dá me tu olvido y te daré mi libertad!




sexta-feira, dezembro 01, 2006

Poetas e Antipoetas

o poeta me chama de poesia.

a antipoética é de quem se livra do livro.
a poética é de quem o livro se livra.

a antipoética é do que existe apenas.
a poética é do que sobrevive apenas.

a poesia me chama de poema.

a antipoética, instinto.
a poética, intuito.

a antipoética, corpo.
a poética, corte.

o poema é marco zero da poesia.

a antipoética corrói o poema.
a poética come a poesia.

a antipoética inventa poetas.
a poética contamina poetas.

a poesia é ponto g do poema.

a antipoética é o antiantípoda.
a poética é o antiápex.

a antipoética anuncia.
a poética renuncia.

a antipoética é pra quem esbraveja ser o antipoeta.
a poética é pra quem calunia ser poesia.