segunda-feira, agosto 11, 2008

A poesia não serve para nada que não seja poesia.

Às 16h da tarde ela já estava cheia de silêncios. Chegaria em casa e inundaria a sala com sons dos discos sem dizer nada. Era assim mesmo: silêncio e uma alma tranquila. Sentia vez enquando uns beliscões na consciência porque achava a mudez o crime mais grave que cometera. Afinal ela sempre tinha uma palavra pendurada na língua. Aborreceu-se em tomar conta das situações e ser admirada com uma indagação na testa. Fim do dia, fim da fala, só versos. Lia Manoel de Barros e ria de tanto 'apalpar as intimidades' daquilo tudo:
"Senhor, eu tenho orgulho do imprestável!
O abandono me protege."
"Descobri aos 13 anos que o que me dava prazer nas leituras não era a beleza das frases, mas a doença delas."
"Eu sou o medo da lucidez. Choveu na palavra onde eu estava."
"Penso que dentro de minha casca não tem um bicho: tem um silêncio feroz."
Mais nada fazia senão observar movimentos meticulosos de mosquitos criando letrinhas nos desajeitados vôos. Olhar também que as manchas de mofo na parede lembravam um pouco Kandinsky. Coisa bem esquisita gostar do barulho da água pingando, das portas batendo, do gato miando, e por acaso isso é o silêncio?! Enxergar arte onde não tem! Estar à merce do silêncio é muito perigoso. Pensou estar delirando afinal. Foi ali que ela se deu conta: estava em estado de poesia.

3 comentários:

Cezar Dias disse...

muito lindo o texto, cris!

Anne Petit disse...

Ai!!
Mergulhei em tamanho estado de poesia ao ler tua produção que a palavra pendurada à minha lígua, despencou, se espatifou ao chão.
Mas, 1 minuto!
Consegui juntar!
Tá aí!
A-D-O-R-E-I !
Bjus e bom final de semana!

Unknown disse...

(para onde voam os dinossauros)

não defende teses não alimenta preces
não roga pragas não combate males

o poema nada precisa
pode surgir do encantamento
falar de um acontecimento

não embala esperanças não engorda larvas
não castra crianças não atravessa vales

não precisa ser difícil ou simples
pode ser cantarolado
ou rabiscado do princípio ao fim

não precisa ser grande
não precisa ser pequeno

montanha gigantesca ou grão de areia
ele toma a medida
de quem o faça de quem o leia

pode ter o sabor de um copo d’água
calar a sede com a gota cristalina
que nos atira indefesos
na vertente no riacho na lagoa no mar

a insignificância de um beijo
a inocência de um carinho
a irrelevância do vôo da fada
e do pássaro dentro do ninho

existe porque não acontece
deixar de ser feito:
flor no jardim
amor dentro do peito

o poema não serve para nada
que não sirva para ser um poema